Camping #11



Uma chamada inesperada

            Otto e eu dormimos na casa da Liv no dia da “festinha” do pijama, assim como uma galera. Alice aparentemente resolveu ignorar o fato de nunca ter gostado do Otto depois que viu nós dois juntos e ficou toda amores pro lado dele a noite toda, o que eu suspeitava fortemente que era efeito do álcool circulando no sangue dela. Liv me contou que Ian ficou um bom tempo me procurando, dizendo que precisava conversar comigo, mas que ele simplesmente foi embora sem dizer nada e nem se despediu de ninguém depois que ela tinha dito que achava que eu estava no telhado, como sempre. Ela não sabia dizer se ele tinha ido me procurar lá ou não.
            As coisas entre Otto e eu estavam muito bem, obrigado! Depois da festa, Alice passou a dizer que “desgostava” um pouco menos dele, porque ela via que ele estava me fazendo bem e era isso o que importava. Passado um mês, ela até conseguia admitir que “gostava um pouquinho dele”. Era até engraçado ver como os papéis haviam se invertido e agora era ela que acompanhava um casal e não eu. Aliás, ela tinha resolvido tirar um “período sabático de boys”, no qual não se envolveria com nenhum garoto, porque precisava de um tempo pra si mesma; eu super apoiava/concordava. Já Liv, pelo contrário, vinha “passando o rodo geral”, pegando quem Deus ou o mundo mandasse. Aparentemente, a festa fez muito bem pro ego dela que andava um pouco inflado demais, mas nada tão prejudicial.
            Ian... bem...
            O Ian tinha se afastado de todo mundo depois do dia da festa. E quando eu digo “todo mundo”, é todo mundo mesmo. Ele não estava andando nem mesmo com o pessoal da nossa sala e tinha se metido com uma galera meio barra pesada, se mudado pra casa de um carinha dessa galera, vivia cheirando a álcool e tinha começado a fumar, sem contar que quase não aparecia nas aulas.
            Como eu disse antes, as coisas entre Otto e eu estavam muito boas, muito mesmo. Boas até o dia em que um número desconhecido me ligou no meio da tarde...

            Otto e eu estávamos no meu quarto, nos agarrando na minha cama, como é esperado de qualquer casal adolescente – e essa era uma das melhores partes de fazer parte de um casal – quando o meu celular começou a vibrar no criado-mudo. Ignoramos e ele parou. Continuamos nos agarrando. O celular começou a vibrar de novo. Ignoramos e ele parou mais uma vez. Mais uma e outra vez o celular tocou e mais uma e outra vez ignoramos.
            – Certo – Otto afastou a sua boca da minha e falou, meio a contragosto – eu odeio ter que dizer isso, mas pelo amor de qualquer coisa atende esse celular, Zac.
            Eu bufei.
            – Tudo bem. – Falei. Peguei o celular que quase caía de cima do criado-mudo. – Pronto. – Atendi. Silêncio do outro lado da linha. – Alô? – Continuava fazendo silêncio. – Alguém? – Otto me perguntou quem era. Nenhuma resposta, só o som de vidro quebrando. Já meio sem paciência, bufei com o celular no ouvido e emendei: - Olha só, não to com tempo pra brincadeira, ok? To desligando, passar bem!
            – Zac? – Finalmente uma resposta! – Er... Zac, não.... Não desliga, por favor.
            Levei alguns segundos pra assimilar e reconhecer a voz do outro lado da linha.
            – Quem é? – Otto perguntou.
            Ian? – Exclamei sem saber muito bem como reagir.
            Otto levantou as sobrancelhas e ergueu os braços como quem diz “o que?”. “Não sei”, articulei as palavras sem emitir som em resposta.
            – Er... Eu mesmo – ele soltou uma risada fraca. – Tudo bem contigo?
            – Tudo... Ian, tem alguma coisa acontecendo?
            – Faz tempo que a gente não se fala, né, Zac? – Aparentemente ele resolveu ignorar a minha pergunta. – Muito tempo mesmo!
            – Ian, tá tudo bem contigo? – Perguntei sem entender nada. – Tua voz tá meio estranha.
            – Tá sim. Só to meio chapado, sei lá. Então – ele continuou. – Tem como tu vir aqui em casa agora?
            – Que? Ir na tua casa? Tá maluco? – Olhei pro Otto e ele parecia contar as estrelas no teto do quarto.
            – Er... É que na real, eu não to muito legal e precisava conversar contigo.
            Revirei os olhos.
            – Conversar comigo? – Exclamei, meio que mais alto do que eu pretendia. Otto pareceu alarmado com a mudança no meu tom de voz. – Agora tu queres conversar comigo?!
            – Na verdade, eu já quero fazer isso há um tempo, mas só agora criei coragem. Olha... – ele hesitou um pouco e não terminou a frase.
            – Olha...? – Instiguei ele a continuar. Pela minha visão periférica, vi que Otto tinha começado a vestir a bermuda. Acompanhei enquanto ele fechava o zíper e colocava o cinto, o elástico branco da cueca ainda visível...
            Droga, pensei. Xinguei Ian mentalmente por ter estragado a minha tarde, mas quando fui botar em palavras os xingamentos, percebi que a chamada tinha encerrado.
            – Vem, eu te levo. – Foi tudo o que Otto disse, colocando a camisa e saindo do quarto.
            Levei um tempo até conseguir entender o que ele quis dizer e um tempo ainda maior até conseguir sair da cama e me vestir pra encontrar com o Otto no carro que, apesar de não ser dele, o pai emprestava sempre que ele queria me ver – vantagens e desvantagens de se morar longe. No caminho nenhum dos dois disse uma palavra sequer, mas o clima dentro do carro era tão denso que acho que dava pra cortar com uma faca. Otto parou o carro na frente da casa em que Ian estava morando.
            – Otto...
            – Zac, tá... Tá tudo bem. – ele disse sem me olhar nos olhos. Ele sempre fora um péssimo mentiroso. – Eu vou ficar aqui te esperando. Só... Não demora muito, tá bem? – e me deu um selinho antes de abrir a porta do lado do passageiro pra mim.
            Bati algumas vezes na porta, mas como não obtive nenhuma resposta respirei fundo e abri a porta. Confesso que fiquei um pouco decepcionado com o que vi. Esperava um pouco mais de caos e desorganização. Não sei o porquê, mas esperava. Dei de cara com uma sala organizada, com dois sofás, uma mesa de centro com uma toalha branca e alguns copos em cima, um minibar na parte direita e uma tv e videogames na parte esquerda. Tudo muito bonito, pelo menos até eu notar uma mancha vermelho-amarronzada na toalha. Meu coração de repente começou a bater mais rápido no peito e tratei de inspecionar a mancha.
Sangue?
            Olhei em volta e vi que no chão haviam alguns respingos da mesma cor vermelho-amarronzada. Segui o rastro até o minibar e vi uma garrafa de whisky, também manchada. Senti o coração batendo forte na garganta e nos ouvidos. Rodei toda a parte de baixo da casa atrás do Ian, mas nem sinal dele. Além das marcas grotescas de sangue seco espalhadas aqui e ali.
            Encontrei um banheiro pequeno e com o espelho quebrado. O que esse idiota tinha feito?! Continuei seguindo as gotas de sangue no chão e marcas nas paredes e fui dar em uma escada de ferro nos fundos da casa. Subi e encontrei Ian olhando pela janela de um quarto que mais parecia uma segunda casa com três camas e mais dois sofás espalhados pelo lugar.
            – Ian? – Chamei. Ele pareceu tomar um susto quando ouviu a minha voz, porque deu pra ver o espasmo que o corpo dele deu. – O que aconteceu aqui? – Perguntei quando ele se virou pra me olhar.
            – Acho que cortei a mão – ele riu, levantando uma mão muito mal enfaixada em uma toalha verde.
            Fui na direção dele e examinei a mão enfaixada de perto. Tirei a toalha e vi que ele tinha cortes nos punhos e na palma da mão direita. Nós dois tremíamos.
            – E como é que isso aconteceu?
            – Ah, não sei. – Ele riu de novo – Na hora que eu te liguei. Soquei o espelho pra ver se criava coragem e dizia alguma coisa.
            – Idiota. – Sussurrei. – Tem algum kit de primeiros socorros aí?
            – Tem no banheiro, lá em baixo.
            – Naquele que parece cena de filme de serial killer?
            – É. – Ele riu de novo. Nós dois descemos, um clima meio desconfortável, mas menos denso que o que tava no carro com o Otto.
            – Desculpa ter atrapalhado o clima com o teu namoradinho – ele falou, enquanto eu limpava o corte na palma da mão. – Ai!
            – Desculpa. – Resmunguei. Confesso que não gostei da forma como ele falou do Otto. Até mesmo porque a gente ainda não tinha conversado sobre como chamar a nossa relação. – Ele não é... Espera, como tu sabes que eu tava com ele?
            – Deduzi quanto te vi saindo do carro dele. Ai!
            – Se tu ficar quieto, talvez doa menos.
            – Mas eu to quiet.. Ai! Tá bom, eu não falo mais.
            – Desculpa e obrigado. – dei um sorriso falso e fechei a cara de novo.
            – Ciúme. – Foi tudo o que ele falou. Apertei o corte de novo, mas dessa vez ele não reclamou.
            Vendo que ele tinha sido claramente ignorado, Ian fechou a cara e não falou mais até que eu tivesse terminado os curativos. Por algum motivo, ele me levou pela mão de novo pro quarto no andar de cima e me jogou num dos sofás.
            – Filho da.. – exclamei, meio sem fôlego, mas não consegui concluir a frase. Quando dei por mim, os lábios de Ian estavam nos meus, ansiosos e desajeitados. Soquei a cara dele e o empurrei pra longe, sentindo um calor subindo pelas minhas veias. Raiva? – Tá maluco, Ian?!
            – Cê bate que nem menina, Zac! – Ian riu, alisando o rosto.
            – Vai se foder, idiota! – Exclamei. – Eu sabia que não deveria ter vindo aqui! – Virei de costas e já me preparava pra descer as escadas, mas ele segurou a minha camisa.
            – Desculpa, desculpa, desculpa! – Ele se apressou em dizer. – Eu fui um idiota mesmo! Não deveria ter feito isso, ou mesmo isso – ele ergueu a mão enfaixada com gaze – Mas é que eu te liguei, aí ouvi a voz dele e fiquei me mordendo de ciúmes. Por isso soquei o espelho. Eu sei que não deveria nem ter te ligado, mas eu precisava falar contigo, mas ele tava lá... – ele suspirou – Desculpa, Zac. Me desculpa mesmo.
            – Desculpar? – Eu me virei, cruzando os braços pra não socar a cara dele de novo. – Desculpar pelo o que exatamente? Por ter me beijado agora? Por ter me ligado e acabado com o clima da minha tarde toda? Por ter agido como um babaca? Por me beijar na praça, ferrar com a minha cabeça e depois fingir que não aconteceu nada? Por sumir e aparecer sempre que dá na telha, como se a minha vida girasse em torno da tua? Desculpar pelo o que, Ian?
            Ele me olhava com os olhos arregalados e a boca aberta. Eu não tinha percebido, mas no decorrer das várias perguntas minha voz foi subindo, subindo, subindo e quando dei por mim, estava quase gritando com ele.
            – Por tudo, eu acho – a voz dele baixou pra quase um sussurro e ele se sentou no chão, parecendo derrotado. – Mas principalmente por nunca ter dito que te am...
            – Não! – interrompi a frase antes do final. – Não, Ian. Não agora. Não hoje. Por favor!
            Ele me olhou de uma forma...
            – Eu te perdi, não foi? Pra ele.
            – Não, Ian – respondi, sentando na frente dele – Não pra ele. Tu me perdeste quando eu percebi que tu nunca ias admitir o que sentia ou achava que tava sentindo por mim. Tu me perdeste no momento que se deixou vencer pela covardia. Tu me perdeste no momento em que me deixou sozinho. E foi aí que o Otto entrou na minha vida, não antes.
            – Eu fui um covarde mesmo. Mas... eu tava confuso. Nunca tinha sentido nada por ninguém da mesma forma que senti por ti e isso me deixou tão assustado!
            – Eu também senti medo, Ian. Mas a diferença é que não resolvi fugir e me esconder. Eu encarei de frente. – suspirei – Não te culpo por isso. Sei que nem todo mundo lida com esse tipo de sentimento como eu lidei e... Bem, me desculpa por ter explodido contigo. – Ian segurou o meu rosto entre as mãos e aproximou o rosto dele do meu. Pensei que ele fosse tentar me beijar de novo, mas tudo o que ele fez foi encostar a testa na minha. – Eu te perdoo, cara. E, é, eu também te amo, apesar dos pesares.
            – Ama? – ele sorriu.
            – Amo. – respondi, também sorrindo. – Mas isso não muda nada.
            Ainda sorrindo, ele respondeu:
            – Eu sei, Zac. E tudo bem.

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