Otto
Certo,
certo. Se tu me acompanhas há algum tempo e, bem, sendo o meu Diário então
tecnicamente acompanha sim, deve estar tipo: “quem diabos é Otto, meu anjo?
Como assim tu já vais beijando o boy numa festa e não me conta nada antes? Eu
tenho que me preparar psicologicamente antes, sabia?”. Então, agora é a hora
que eu digo quem é Otto, onde vive, o que come, o que faz da vida, de onde a
gente se conhece e essas coisas que a gente sempre vê naquele programa de tv.
Otto e eu nos conhecemos desde pequenos
pra falar a verdade. A gente sempre foi do mesmo colégio, sempre de salas
diferentes e ele sempre frequentou o mesmo acampamento de verão que eu. Aliás,
o mesmo acampamento onde conheci o Ian. Acho que a única coisa que impediu que
nós dois formássemos uma amizade de verdade, era o fato de ele morar meio longe
de casa – e a Alice nunca gostou muito dele também.
O Otto era o carinha que sempre tava
ali: bonitinho, inteligente, meio desengonçado, o cabelo louro sempre
desarrumado, caindo nos olhos de vez em quando e óculos de grau pendurados na
camisa. No acampamento era a mesma coisa, até conhecer o Ian.
Sendo bem sincero, a única vez que
eu tinha notado o Otto de uma forma mais.... – diferente? Isso, diferente –
diferente, antes da festa da Liv foi num dia que fui na biblioteca da escola
devolver uns livros que havia pegado emprestado, durante o intervalo das aulas:
Eu vinha subindo as escadas que
levavam à biblioteca literalmente sem conseguir enxergar nada, porque os livros
que carregava nos braços bloqueavam o meu campo de visão quase todo, o que eu conseguia
ver eram os degraus sob os meus pés e as paredes, quando alguém passou
praticamente correndo, esbarrou em mim e me fez derrubar a pilha de livros toda
na escadaria – maior cena clichê de filme.
– Olha por onde anda, idio... – me
interrompi quando vi quem era – Ah, Otto! Desculpa, eu não ia te chamar de...
er... eu não vi quem era.
– Tudo bem, Zac. Eu sou mesmo um idiota por descer
as escadas correndo. Deixa que eu te ajudo com isso – ele disse já abaixando
pra pegar os livros.
– Não precisa – eu respondi, mas ele já tinha
começado a empilhar tudo.
Livros empilhados, ele começou a subir as escadas
sem dizer nada. O corredor era estreito, dava no máximo duas pessoas lado a
lado e bem apertadas uma na outra, era meio sufocante na verdade, mas eu já
tinha me acostumado com aquilo.
Otto foi na frente, levando metade dos livros e
me deixando com a outra metade e eu me peguei perguntando em que momento ele
tinha trocado o perfume doce e enjoativo que ele usava desde que me lembrava
por esse com uma fragrância mais discreta que me lembrava algo parecido com
lavanda e brisa do mar. Dava pra sentir também o cheiro de chocolate que vinha
dos cabelos dele, isso nunca mudou.
Desde quando
eu paro pra reparar no Otto?,
me peguei pensando. Ele era o carinha que no último acampamento fazia de tudo
pra me irritar, tirando o Ian de perto pra falar sobre qualquer besteira que
gente da nossa idade falava. E eu podia ver o sorrisinho irônico que ele dava
sempre que percebia que tinha conseguido me “roubar” o Ian. Será que ele tinha
percebido os meus sentimentos antes de mim mesmo?
– Então, Zac – ele falou, me tirando dos meus
devaneios – To vendo que tu gostas muito de ler, não é?
– É. – respondi.
– Eu até gosto de ler, mas... – ele soltou um
risinho – acho que não tanto como tu. Olha só quanto livro!
– Pois é. A Alice sempre fica me zoando por causa
da quantidade de livros que eu pego na biblioteca toda semana. Ela diz que eu
sou meio nerd ou sei lá o que. Não que isso seja uma ofensa pra mim.
– Ah, eu prefiro ler em PDF mesmo. Acho mais
confortável – ele baixou a voz a um sussurro – Mas que a Judite não me escute
falando isso, senão ela ia me dar um belo puxão de orelha!
Eu ri. Era verdade. Judite, a bibliotecária da
escola, vivia dizendo que não conseguia entender esse povo que “ficava lendo
pelo celular porque nada se comparava com o cheiro de um bom livro gasto de
tanto ler” e, aliás era exatamente isso que ela estava fazendo quando chegamos
na biblioteca. Ela lia o exemplar, já gasto e lido pelo menos umas mil vezes
por ela, de “As Crônicas de Nárnia”. Era um dos nossos livros favoritos.
– Zac! – ela abriu um sorrisão quando me viu entrando.
– Ah – ela disse, baixando um pouco os óculos e erguendo uma sobrancelha – e garoto
tenho-tudo-que-preciso-no-meu-celular.
– Oi, Jude! – Otto sorriu pra ela e deu uma
piscadela. Ele tinha um belo sorriso! Tipo, muito bonito mesmo. Sempre achei e
fico muito grato pelo fato de Alice não poder ler meus pensamentos, do
contrário eu viveria levando tapas ou socos no braço como aconteceu na primeira
e última vez que me atrevi a admitir isso em voz alta perto dela.
– Zac? – Judite me tirou dos meus devaneios. O
que tava acontecendo comigo nesse dia? Não sei. – Tudo bem?
– Er... tudo! Aqui – respondi sem jeito,
colocando os livros em cima da mesa dela. – Só falta O Grande Gatsby, quero ler mais uma vez antes de devolver. Posso
trazer no final do dia?
– Claro! Tudo pelo meu leitor favorito. Aliás –
ela emendou rápido – por falar em ler, você bem que poderia tentar colocar um
pouco de juízo na cabeça do Garoto-Celular aí e fazer ele ler uma coisa mais
física, não?
– Física? – Otto fez uma careta – Odeio! Mas,
obrigado!
Judite revirou os olhos.
Apesar de não ser tão velha quanto o nome sugere,
ela tinha por volta dos 25/26 anos no máximo, Judite detestava mexer com
tecnologia. Ela dizia que deixava as pessoas “avoadas e com a cabeça oca”. Eu
meio que tinha que concordar com isso em alguns casos.
Livros entregues, peguei emprestado um exemplar
da Odisseia e voltei pra escadaria infinita com Otto logo atrás. O cheiro de
lavanda, brisa do mar e chocolate dominando o espaço apertado e era uma
combinação um tanto quanto exótica; mas até que gostei.
– Obrigado pela ajuda com os livros – virei pra
falar com Otto, batendo no estômago dele com o meu cotovelo sem querer. –
Desculpa! Cara, eu sou um desastre!
– Não é não – ele disse meio rindo e meio
ofegando, com uma mão na barriga – E, no final, acho que mereci por quase ter
te jogado da escada.
– Sendo assim, retiro meu pedido de desculpas,
Nazaré Tedesco!
Ele soltou um riso curto.
– Zac...? – Ele de repente pareceu meio nervoso. –
Eu sei que a Alice nunca gostou muito de mim e que... hum... tu também nunca
foste o meu maior fã...
– Não, eu não te odeio 100% – eu ri – se é que
era isso que tu ias perguntar. Relaxa.
– Não é isso, mas confesso que fico um pouco mais
aliviado por saber disso, mas... – ele hesitou, respirou fundo como quem toma
coragem e falou rápido: – Tu aceitas ir tomar um café comigo, ou um sorvete, ou
qualquer coisa, sei lá depois das aulas?
Wow! Ele tinha conseguido me pegar de surpresa! E
acho que ele também tinha prendido a respiração, esperando uma resposta.
– Claro, Otto. – Respondi. – Agora, respira
porque acho que tu estás começando a ficar um pouco roxo. Não que a cor não
combine contigo!
Ele riu e me acompanhou até a sala, o intervalo
já estava quase acabando.